AS MULATAS
DE GUERRA
Bruno Silva
Esse
trabalho começou como uma análise do poema sobre a mulata Vicência. Porém,
lendo outros poemas de Gregório de Matos e percebendo a constante presença de
mulatas, resolvi analisar como essas mulheres mulatas são tratadas – ou mal
tratadas. Para isso faço uso de outros poemas, além de “À caridade com que esta mesma Vicência
agasalhava três amantes”. São eles: “Que fez o autor a
uma mulata que chamam Julu” e “À
mesma Dona Ângela”. Os dois
primeiros são sobre mulatas e o último é sobre uma mulher branca, fidalga. Veremos
o significante contraste entre o que é escrito sobre as mestiças e o que é
escrito sobre a senhora de cara pálida.
O poema sobre a mulata Vicência satiriza
a dita cuja por causa de seus modos imorais, sua promiscuidade. É uma mulher
que ama três homens ao mesmo tempo. Esse “amor” não se dá de forma romântica,
no entanto. É um amor carnal, carregado de luxúria. Um amor considerado “de
mulata”. Na poesia, Gregório trata esse amor de maneira irônica, pedindo a
Vicência que venda certo produto a ele, mas de graça, já que ela é tão cheia de
amor para dar. No segundo poema, ele fala sobre Julu. Gregório a presenteia com
títulos como: Rainha das mulatas e Deusa das putas. Depois disso, faz um elogio
chamando a mulata de airosa (gentil, honrável) linda, galharda (de presença
agradável, elegante) e folgazona (jovial). Em seguida, chama a coitada de cagona.
No último poema, Gregório escreveu sobre Dona Ângela, uma mulher de honra, de
família reconhecida, branca, a musa de Gregório em mais de um poema, e branca.
Enquanto Vicência é uma puta e Julu é uma puta de maior cacife, Dona Ângela é
uma anja e uma flor.
Quando trata das mulatas,Gregório é
descortês e grosseiro, usa uma linguagem escrachada e termos chulos para
agredir e censurar. Já quando trata da mulher branca, é gentil, decente e recatado.
A forma como elas eram nas obras
literárias é um reflexo da forma como essas mulheres eram tratadas na
realidade.
Para as pessoas do período colonial
havia uma hierarquia de traços positivos e uma de negativos que devia ser
seguida religiosamente. Elas se configuravam da seguinte forma:
A positiva - branco > fidalgo >
católico > livre.
A negativa - não-branco >
não-católico > escravo > mulher.
Como a mulher é o objeto deste trabalho,
focaremos na sua relação com o resto da sociedade. Mais especificamente, as
diferenças nas relações entre a mulher mulata e a sociedade e a mulher branca e
a sociedade.
Antes de tudo, sendo mulheres, ambas
sofriam preconceitos e possuíam um estereótipo que ditava todas as interações
que as envolviam. Os homens brancos eram superiores à todas as mulheres da
sociedade. Porém, tinham a obrigação de respeitar as mulheres brancas “de
família”. Já sobre a mulher negra, é um objeto e o homem tem plenos diretos
sobre esse objeto, portanto, pode fazer o que quiser com ele. Um provérbio evocado
por Gilberto Freyre dizia o seguinte: “A negra na cozinha, a mulata na cama e a
branca no altar”.
A mulata, que é fruto da relação entre
senhores e escravas, se torna o símbolo sexual da época, o fruto proibido, que
tenta e corrompe os homens brancos, que ficavam divididos entre o repúdio e o
desejo que sentiam. As mulatas eram as mulheres frutas e panicats de hoje em
dia. Boas se o indivíduo quer pôr o capitão caralho para trabalhar? Sim. Para
casamento? Nem tanto. Além disso, as mulatas ganharam a fama de possuir um
apetite sexual insaciável, eram “esfaimadas” como disse Gregório no poema “A Luiza Sapata
querendo, que o amigo lhe desse quatro investidas duas de dia, e duas de
noite”. Este boato atiçava ainda mais o imaginário
dos fidalgos.
Esse é o estereótipo que toda mulata carregava
e era obrigada a aceitar. Um estereótipo que servia para justificar desejo que
elas despertavam nos senhores, que as usavam para afirmar sua virilidade. As
mulatas eram para ser usadas como seus donos quisessem. As sátiras de Gregório
sobre Vicência, que aparece num outro poema em que é chamada de fedorenta, e
Julu, descrevem a forma como as mulatas eram vistas: inferiores, sujas e lascivas.
A mulher branca, por sua vez, era um
ensino de pureza, castidade e moral. Devia possuir gestos e traços angelicais,
como Dona Ângela Meneses. Não era vista como um objeto sexual, ela despertava
sentimentos puros, mais românticos, provocava reflexões profundas sobre o amor
e estava em um nível espiritual superior. Eram mulheres para casar e constituir
família.
A hostilidade de Gregório aos negros e
mulatos, principalmente a estes últimos, é constante em sua obra. Ele viveu em
uma época de indivíduos machistas, racistas e (falsos) moralistas. Na época, se
achar superior as mulheres e aos negros e seus descendentes era algo comum,
claro. Adequado, até. Portanto, que as produções literárias de Gregório possuam
um caráter de rejeição a certos grupos, não é algo chocante. Mulatos sofriam
mais preconceito do que negros, provavelmente porque eram gerados do pecado,
uma vez que o sexo naquele tempo só devia ocorrer para procriação, e só podia
ocorrer dentro do casamento. Eram bastardos que lembravam a sociedade de
relações que não deviam acontecer, mas que aconteciam o tempo todo. Eles
tornavam-se uma ponte entre dois povos. Alguns deles até recebiam proteção da
casa grande, onde assimilavam modos e educação dos brancos, às vezes ganhavam
altas posições na sociedade. Guerra era um porta-voz do descontentamento que
muitos da sociedade sentiam em relação aos mulatos. Mas a hostilidade de Gregório
andava junto com o seu desejo pelas mulatas. Em seu poema sobre uma mulata
chamada Annica, ele deixa claro que sente um enorme tesão por ela. Diz que “a
anca fendida de Annica lhe deu mil tentações de fodê-la”.
Gregório
de Matos levou os negros, os mulatos, os índios, enfim, o povo colonizado, para
as obras literárias. Do seu ponto de vista, escreveu sobre aspectos pessoais e
também sobre aspectos culturais desses povos, incluindo todos na história do
país. Seus textos nos mostram como foi construída essa nação.Ainda que seus
poemas sobre esses grupos carreguem o preconceito característico da sociedade de
sua época, eles possuem uma importância enorme, pois são documentos valiosos que
nos contam como se organizava a sociedade setecentista, politicamente e economicamente,
além de servirem para qualquer análise das relações inter-raciais, muito
controversas, do período colonial.
BIBLIOGRAFIA:
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Sobre a invenção da mulata. Publicado em
Cadernos Pagu (6-7) 1996: pp.35-50.
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PERES, Fernando
da Rocha. Negros e Mulatos em Gregório de Matos, 1967.
SOUZA, Mariely
Zambianco Soares. Gregório De Matos: Uma análise da
Bahia e da América Portuguesa por meio de suas poesias. Publicado em Revista
Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, nº4 jan-jun 2013. p.234-248.
TOPA, Francisco.
Edição Crítica da Obra Poética de Gregório de Matos – Volume II Edição dos
Sonetos, 1999.
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